A MORTE DO IRMÃO CARLOS (Benedito Prezia)

 

Recentemente surgiram dúvidas sobre as circunstâncias da morte do irmão Carlos e se fez a pergunta quais pessoas teriam sido seus executores. Assim resolvi retomar o livro de Antoine Chaterlard, La mort de Charles de Foucauld, que havia recebido em 2010, mas que na realidade não havia lido.[1] Foi muito bom esse retorno, para ver a complexidade dos últimos anos da vida de nosso Irmãozinho.

            A ideia de uma morte próxima e, talvez, violenta o acompanhou na última etapa de sua vida. No carnê, que levava consigo, estava escrito na 1ª. página: Viver hoje como se tivesse que morrer, nesta tarde, MARTIR. 

Quando esteve nas montanhas de Assekrem, numa espécie de retiro, no dia 13 de dezembro de 1911 escreveu seu testamento, no qual relatava ter alguns bens na França, como casa e terrenos. Colocou esse texto num envelope fechado, onde estava escrito na parte externa: Por ocasião de minha morte, favor abrir este envelope e enviar seu conteúdo ao sr. Raymond de Blic, em Barbirey, via Port de Pany (Dep. Côte d’Or). Fr. Ch. De Foucauld.

            Raymond de Blic era seu cunhado e os bens elencados recebera como herança familiar. Três anos depois, em outubro de 1914, sentindo o agravamento da situação  política da região, escreveu na parte externa daquele envelope: Quero ser enterrado onde eu morrer, num enterro bem simples, sem caixão, num túmulo bem simples, sem jazigo, tendo apenas uma cruz de madeira. Charles de Foucauld, 24 de outubro de 1914.

Foi o que ocorreu em 1º de dezembro de 1916.

Na realidade irmão Carlos não foi um mártir, como ele queria e no sentido estrito da Igreja, pois não morreu pela fé cristã. Foi o que observou Marcelo Barros, na recente palestra promovida pela Fraternidade de Brasília. Mas ele entrou na categoria de mártir da caridade, definida por João Paulo II, quando canonizou o padre Maximiliano Kolbe, que morreu no campo de concentração, ao ficar no lugar de um pai de família judeu.

Irmão Carlos deu a vida pelos tuaregues do grupo Dag Rali, com os quais conviveu por muitos anos, como escreveu Mussa agg Amastan, líder daquela grupo, à sua irmã Marie: “Carlos, o marabu, não morreu somente por vós, ele morreu também por nós” (Carta de Mussa ag Amastan a Marie de Blic, 13/12/1916. In: BARRAT, Denise e Robert, Charles de Foucauld e a Fraternidade, Agir, 1961, p. 64).

Ultimamente apareceram algumas dúvidas sobre as circunstâncias de sua morte. Teria sido morto pelos tuaregues rebelados? Foi um grupo islâmico radical?

A partir do livro de Antoine Chatelard, vê-se que o Norte da África, sobretudo, o Saara, vivia um momento agitado, sacudido por movimentos armados, que não aceitavam a ocupação europeia. Com a eclosão da 1ª Grande Guerra, a Itália, que conquistara a Tripolitânia, atual Líbia, abandonara o território, preferindo enfrentar Alemanha no território europeu.

Nessa época vão surgir alguns líderes tuaregues, dispostos a enfrentar também os franceses, que ocupavam a atual Argélia, como Kaocen. Era tuaregue, mas não do Saara, mas originário do Níger, país localizado no centro-oeste saariano.

Os italianos, ao saírem, abandonaram vilas importantes, como Ghat, na fronteira do Saara argelino, deixando farto armamento. Kaocen aproveitou-se desse momento, recuperando muita arma e munição. A partir daí apresentou-se como o grande libertador da região.

Sentindo-se como novo líder, mandou uma carta para o comandante Meynier, que estava em El Barkat e que respondia pelo Forte Polignac, exigindo que o evacuasse. Isso fez o militar perceber que uma nova força estava surgindo na Tripolitânia, podendo colocar em risco a presença francesa no sul do Saara.

De fato, esse grupo de resistência estava com uma verdadeira tropa, composta por cerca de 200 homens armados, muitos camelos, dois canhões, metralhadora e farta a munição conseguida em Ghat. A tropa era ainda reforçada por mais de 60 homens a pé, munidos de fuzis italianos, apoiada por 35 guerreiros, comandados por um ex-brigadeiro nativo, membro da Companhia Francesa Saariana. Havia também o reforço de dissidentes méharistas, isto é, soldados árabes, que atuavam nas tropas francesas e o apoio de 27 tuaregues de diferentes tribos e de 40 prisioneiros, compulsoriamente engajados nesse exército.

Faltava a adesão dos Dag Rali, liderados por Mussa agg Amastan, da região do Ahaggar, que fizera aliança com os franceses e entre os quais vivia irmão Carlos. Mesmo entre esses tuaregues não havia unanimidade, pois outro líder, Amud, talvez provável sucessor de Mussa, tinha simpatias pelo movimento de Kaocen.

Outras lideranças já despontavam, como Kerzu e Khammed, sendo que este último era ligado a Senussiya, confraria islâmica radical, que pregava a guerra santa contra os europeus.  Seus adeptos eram conhecidos como senussistas. Deste último líder partiu o brado que estava ressoando pelo Saara: “Agora é a hora dos muçulmanos: a dominação francesa acabou!”

O agravamento dos conflitos no Saara fez com que irmão Carlos planejasse construir um pequeno forte para abrigar os moradores de Tamanrasset, em caso de ataque.

Entretanto parecia haver certa calma, no final de 1916, como escreveu irmão Carlos à sua prima, no dia de sua morte:

Não parece haver perigo para nós neste momento, do lado da Tripolitânia e dos senussistas. Nossas tropas, que estão nessa região foram bem reforçadas e espero que rechacem o inimigo para além de nossas fronteiras. Não tivemos mais alertas desde setembro. O país está bem calmo, assim como o sul argelino. (Carta de 1º de dezembro de 1916 à sra. de Bondy. In: FOUCAULD, Ch. Oevres Spirituelles, 1958, p, 731)  

Como os missionários jesuítas do século XVI do Brasil, que acreditavam que somente com o império português seria possível implantar a fé cristã, irmão Carlos avaliava também que somente com a presença francesa seria possível implantar a fé cristã no Saara.

Nesse momento Kerzu tornava-se um personagem importante. Ao saber que Kaocen dirigia-se para o Ahaggar, decidiu encontrar-se com ele. No caminho cruzou com El Madani, um tuaregue que havia se envolvido numa confusão em Amsel e que voltava para sua terra, Ghat, na Tripolitânia. Conhecia também os Tuaregues de Tamanrasset, tendo morado lá por um tempo.

Kerzu percebeu que era um indivíduo não muito confiável, pois estava com um camelo roubado, como mostrava a marca do animal. Confiscou o camelo, esperando devolvê-lo ao dono, e o incorporou a seu grupo, embora o mantivesse a certa distância.

Depois de ter se encontrado com Kaocen, Kerzu decidiu juntar-se a outro grupo tuaregue guerreiro, liderado por Ebbah, e que circulava pela região.

É possível que El Madani tenha comentado da existência do pequeno forte construído pelo marabu cristão em Tamanrasset, onde haveria armas e alimento. Provavelmente imaginaram que seria mais fácil assaltá-lo do que atacar o grande forte Motylinski, que ficava cerca de 15 horas de Tamanrasset.

Na realidade, as armas havia sido deixada pelos militares, para que fossem distribuídas aos tuaregues, para se defenderem em caso de ataque.

 

Com esse reforço, o grupo de Ebbah passava a ter uns 40 homens e todos seguem para Tamanrasset.

Lá chegando, esconderam-se atrás de uns rochedos, situados depois do oued[2], esperando o cair da noite. Dali podiam acompanhar a movimentação do vilarejo. Viram o retorno de Paul Embarek para sua casa, ao lado dos haratins[3], que viviam no lado esquerdo do oued. Ele voltava do forte, onde acabara de preparar o mingau para o marabu.

De lá descortinavam também as 24 casas tuaregues, que ficavam do outro lado do oued. Um pouco mais isolada, estava a casa de Mussa agg Amastan, o amenokal. Ele não se encontrava lá, pois havia ido para Adrar, uma região mais ao Sul do Saara. No centro do povoado ficava o pequeno forte do marabu. Em outro setor, estavam as casas dos Dag Ghali, sub-grupo tuaregue que naqueles dias estava a uns 15 quilômetros de lá, tendo levado suas cabras para pastar.

O “forte”, construído pelo irmão Carlos, vendo-se a entrada e o fosso circundante

Com os depoimentos de Embarek e de outros tuaregues, como El Madani, Antoine Chatelard consegue reconstituir os últimos momentos do irmão Carlos, como irei descrever.

Três homens armados vão até a casa de Embarek, e o surpreende comendo com a esposa. Perguntam-lhe se é o empregado do marabu. Com a resposta afirmativa, o obrigam a segui-los, dizendo que veria “o que ia acontecer...”

Percebendo a gravidade do momento, Embarek lhes responde: “O que vai acontecer só pode ser da vontade de Deus...”

O grupo o leva até o forte. No caminho, cruzam com um morador do vilarejo, que lhe pergunta: “Ainda não partiu para Tarhauhaut? É verdade que os militares virão nos levar?”

Embarek, responde, gritando: “Fuja, que estou nas mãos de outra gente [de inimigos]!”

-- O que está falando? Perguntou-lhe um dos guerrilheiros.

Nesse momento, Ebbah dirige-se ao forte, com mais dois, sendo um deles El Madani. Este bate com força na porta. De dentro irmão Carlos pergunta: Quem está aí?

El Madani responde: Elbochta!

Seria o nome de uma pessoa ou uma saudação tuaregue?

Ao abrir a porta, ele estendeu a mão para cumprimentar. Imediatamente El Madani o agarra e tenta arrastá-lo para fora, mas irmão Carlos se segura na porta, resistindo. Os outros dois vieram para auxiliá-lo e assim conseguiram puxá-lo para fora. Foi então que ele grita bem alto, em tuaregue: Marabu yemmoût! É uma frase de difícil tradução, mas que seria: “O marabu morre!” ou “Estão matando o marabu!” Era um grito de socorro...

Amarram-no bem forte, com as mãos para trás, ligadas ao tornozelo, o que o faz ficar de joelhos, sobre o calcanhar.

Ebbah colocou o marabu sob a guarda de Sermi ag Tora, um adolescente de uns 15 anos, o mais jovem dos guerrilheiros.  

Nesse momento os demais chegam, entrando afoitos para pegar o que podem. Alguns, incluindo El Madani, ficaram de guarda, para avisar, uma possível chegada de militares.

Naquele início de dezembro, o clarão da lua era fraco, mas dava para ver algo naquela noite. De repente se descortinam dois homens montados em camelos. Eram militares nativos, membros da companhia militar francesa: Bu Aicha e Budjemá.

Logo é dado o alarme: Os árabes! Os árabes!

Os que estavam dentro do forte, saem imediatamente e se escondem no fosso externo. Quando os árabes se aproximam, Bu Aicha é alvejado por um tiro certeiro, morrendo  na hora, assim como seu camelo. O outro tenta correr, mas não consegue ir além de uns 60 metros, sendo também atingido mortalmente.

Nessa confusão, é possível que o irmão Carlos tentasse escapar. Por isso, o rapaz, apavorado, disparou o fuzil contra sua cabeça. Um tiro fatal, que entra pela orelha direita e sai pelo olho esquerdo.

Ao ver esse disparo, Ebbah ficou furioso, dizendo ao jovem que não queria aquela morte. Sermi tenta se justificar, dizendo que o marabu queria escapar.

Os guerrilheiros retornam ao forte e levam o que encontram: armas, munição, roupas, enxadas e até alguns livros. De comida acharam apenas meio saco de açúcar.

Com o barulho dos tiros, aparecem algumas pessoas do povoado, que são igualmente detidas. E ouvem dos guerrilheiros:

Destruimos o elbiro [quartel francês[4]] de Tarhauhaut, outros dos nossos foram para In-Salah atacar o elbiro de lá e nós viemos para matar o marabu e pegar as armas. Viemos aqui para matar todos os kuffar [os infiéis] para que não fique nenhum inimigo nessa região.

            Assustados, os tuaregues do povoado não quiseram enfrentar os saqueadores. Os haratins também chegaram, mas não se manifestaram por medo. Foram obrigados a buscar palha para os camelos e a preparar o chá para o grupo invasor. O camelo atingido foi morto, sendo uma parte assada e distribuída entre o grupo e também para o pessoal do povoado.

A certa altura houve uma discussão sobre o que fazer do corpo do marabu. Alguns queriam enterrá-lo e outros insistiam para deixá-lo exposto para ser devorado por animais. Não chegam a um acordo, pois logo se dispersaram para fazer a pilhagem dos objetos.  

Os moradores do lugar voltaram para suas casas, sem mostrar reação. Não tinham muito que fazer diante daquele grupo armado.

No dia seguinte pela manhã, enquanto preparavam para partir com os produtos confiscados, os guerrilheiros veem chegar um homem num camelo, dirigindo-se ao forte. Reconhecem ser um militar árabe. Parte do grupo se esconde no fosso e outros sobem para a parte superior do forte.

Quem estava chegando era Kuider bem Lakehal, que traz o correio. Saíra na  noite anterior do Forte Motylinski. Deixaria o correio para o marabu e pegaria outras cartas que seriam levadas por nova pessoa até In-Salah.

No povoado já lhe haviam dito o que estava ocorrendo. Mesmo assim quis conferir de perto. Quando passava pela canalização que levava água para o forte, escuta os primeiros tiros. Ao se aproximar, imaginando ter chegado sua hora, recita em voz alta a shahada, o ato de fé muçulmano: “Não há outra divindade a não ser Allah e Maomé seu profeta!”

Devido a essa confissão de fé muçulmana, Ebbah ordena que não o matem. Mas o camelo de Kuider, pressentindo o perigo, empaca e não sai do lugar. Um grupo guerrilheiro avança sobre ele para prendê-lo, e um deles, mais afoito, dá um tiro que lhe perfura o crâneo.

Quando deixam o povoado, Ebbah diz aos haratins para enterrar apenas esse último árabe, pois foi o único que recitara a shahada, merecendo uma sepultura, pois mostrara ser um muçulmano piedoso. Diz também que vão se juntar a outro grupo guerreiro para atacar o forte Motylinski.

Desobedecendo a ordem dada, os tuaregues enterraram irmão Carlos e os três militares árabes, num grande buraco que existia atrás do forte. De lá havia sido tirado o barro usado na construção do forte. Embarek fez questão de cobrir o corpo do marabu com tábuas, para protegê-lo mais.

Nessa mesma noite o filho do chefe do povoado despachou seu irmão, juntamente  com Embarek, ao forte Motylinski para levar a notícia ao capitão La Roche. Viajaram a noite toda, chegando ao final da manhã do dia 3 de dezembro.

Imediatamente o capitão manda um destacamento atrás dos guerrilheiros, que são alcançados no dia 17 de dezembro, quando morreram alguns homens. Havia apenas uma parte do grupo, já que haviam se dispersado.

Em meados do mês, o capitão La Roche partiu para Tamanrasset, chegando lá no dia 21 de dezembro. Consternado, ergueu uma cruz sobre o túmulo, conforme o pedido de irmão Carlos.

Os objetos do forte continuavam espalhados pelo chão: livros, papéis rasgados, a Via Sacra desenhada sobre tabuinhas e a cruz de madeira do oratório. Semienterrado na areia encontrou o ostensório com a hóstia. Certamente era algo bem simples e pequeno, que não atraiu a cobiça dos saqueadores.

O capitão La Roche o recolheu, limpou-o, envolvendo num lenço e o levou para o forte Motylinski. É o que relata Michel Carrouges:

Não se resolvendo a comungar, não se resolvendo a enviá-lo aos Padres Brancos, como o padre aconselhara, o capitão – de acordo com um de seus sub-oficiais que aceitara comungar – longe de qualquer padre, diante da majestade do deserto, segura o ostensório com luvas brancas, abre-o e o sub-oficial toma a Hóstia e comunga. Foi a última hóstia consagrada por Charles de Foucauld. (CARROUGES, Michel, A aventura mística de Charles de Foucauld, Duas Cidades, 1958, p. 226-227).

            Irmão Carlos ficou enterrado em Tamanrasset, como desejava, até 1927, quando foi iniciado o processo de beatificação. Devido a esse processo, seu corpo foi transladado par uma tumba em El Goleá, sede da Prelazia do Saara, onde se encontra até hoje.


“Quanto mais abraçamos a cruz, mais estreitamos nos nossos braços o Senhor”.

Fr. Charles de Jesus



[1] CHATELARD, Antoine. La mort de Charles de Foucauld, Paris: Karthala, 2000.

[2] Oued é o leito de um rio, que fica seca n maior parte do tempo.

[3] Grupo de negros, que viviam nesse povoado, mas separados, e que trabalhavam para os tuaregues. É possível que Paul Embarek fosse também um haratim.

[4] Gíria tuaregue, originada da palavra francesa bureau, que significa escritório. 


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