PROFETISMO!!!
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Dá para ter futuro sem profetismo?
Vejo nos olhos de alguns dos meus colegas o que sinto no meu
coração. Uma angústia, em momentos de ordenação e reuniões do clero, em que
constatamos que os mais jovens não possuem o viés profético que nos acompanha a
nós, desde o período da formação. Outrossim, em paralelo, abusam das roupagens
clericais e fazem da liturgia o ponto mais alto de sua vida sacerdotal. Isso
implica em exagero de modos, roupas e utensílios ditos canónicos! Sei o quanto
isso nos preocupa quando olhamos para o futuro desta Igreja e nos dilacera, por
sentirmo-nos a cada dia, mais aves raras deste passaredo! Apelamos para a
esperança que nos mantém vivos, mesmo sabendo-nos uma já minoria bem saliente.
Em muitas Igrejas Particulares, estamos longe dos mecanismos de decisão e
remetidos a uma periferia inexpressiva onde podemos viver um ostracismo, que
embora nos proporcione certa qualidade de vida em ternos de reflexão, (que
chega com a idade rsrs), nos impede de colaborar mais com os avanços propostos
por Francisco...
Mas ontem eu me vi refletindo
Este viés profético que parece hoje se esvair entre os
nossos dedos, surgiu na Igreja cerca de trinta anos antes do Concílio sob
diversas roupagens e foi tomando corpo na década de quarenta e cinquenta. O
Concílio Vaticano I teve pouco impacto ou nenhum em termos pastorais e o de
Trento, se impôs até ao século XX. Lubac e Congar são, cada um a seu modo, a
expressão do que eu falo. Mas existem vários como Marie-Joseph Lagrange ou
Pierre Teilhard de Chardin. Não por acaso, que Roma os tenha perseguido e
Congar se tenha referido ao Santo Ofício como “Gestapo”! Emile Poulat e Henri
Desroche, acabaram deixando as suas Ordens por não se sentirem “acolhidos” pelo
Vaticano. Há nesse “movimento” um epicentro: o questionamento de uma
eclesiologia que insistia em apresentar a Igreja católica desligada do mundo em
turbulência, entre as duas Guerras Mundiais. Isso, embora, por inciativa papal,
tivessem sido fundados Movimentos ditos “sociais”. Não sendo talvez explícito,
havia uma refutação da Ação Católica, um desses movimentos de extrema direita
nascido para envolver os leigos “no mundo” e que concretamente no Brasil e em
Portugal legitimou governos fascistas e integralistas. Era uma “novidade” em
termos de laicato! Não nos esqueçamos que D. Hélder, no início um homem de
direita, foi assistente deste Movimento! Desta agremiação surgiram a Juventude
Estudantil Católica, a Juventude Universitária Católica e a Juventude Operária
Católica. Estas duas últimas a partir dos anos sessenta, tomaram rumo próprio.
O profetismo nessa época, ensaiava seus passos “modernos” num questionamento
aos rumos da Instituição romana. Padres e leigos, como os citados
anteriormente, conheceram a oposição severa do Santo Ofício à sua eclesiologia
e mesmo teologia!
Congar, resgatado um pouco antes do Concílio Vaticano II foi
de fundamental importância na redação da Lumen Gentium e da Dei Verbum. Como
bem nos lembra o historiador Étienne Fouilloux. Dois documentos de suma
importância para uma Igreja que nascia desse Concílio e que refletiam uma ala
de “padres conciliares” entre os quais os quarenta – alguns brasileiros –
manifestada no Pacto das Catacumbas no dia 16 de Novembro de 1965. Nunca será
demais lembrar que por esse documento de 13 itens, os signatários
comprometeram-se a levar uma vida de pobreza, rejeitar todos os símbolos ou os
privilégios do poder e a colocar os pobres no centro do seu ministério
pastoral. Comprometeram-se também com a colegialidade e com a
corresponsabilidade da Igreja como Povo de Deus, e com a abertura ao mundo e a
acolhida fraterna. Um dos proponentes do pacto foi Dom Hélder Câmara. Este
pacto influenciou a nascente teologia da libertação e os rumos da Segunda
Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, realizada em Medellín. Isso é
história.
Estavam reforçadas as bases para o exercício do profetismo.
A Teologia da Libertação se consolidava em Medellin e em Puebla e em geral, os
bispos sul americanos, ou apoiavam ou toleravam essa caminhada eclesial de
fidelidade ao Evangelho e opção preferencial pelos pobres. Nos seminários
fervia o entusiasmo em trabalhar pelo Reino e os recém ordenados tinham
preferência por trabalhos em periferias degradadas ou acompanhando o
proletariado em sindicatos, fábricas e cortiços. Na França concretamente,
surgiu a experiência dos padres operários que brotam da Juventude Operária
Católica fundada naquele país em 1927. A JOC foi o primeiro movimento católico
na França a perceber que a maioria da classe trabalhadora estava longe da
Igreja e que precisava de novas formas de evangelização. Em 1941, o dominicano
Jacques Loew foi enviado para trabalhar nas docas de Marselha para estudar a
condição das classes trabalhadoras. Em 12 de setembro de 1943, foi publicado o
livro: “France, pays de mission?”, no qual os abades Henri Godin e Yves Daniel,
que quando jovens foram lideranças da JOC, abordaram o problema do afastamento
dos trabalhadores franceses do cristianismo. Naquele ano, o arcebispo de Paris,
criou a “Mission de Paris”, que tinha como meta a formação de sacerdotes para
evangelizar a classe operária parisiense. Estávamos ainda longe do Vaticano II,
mas podemos afirmar com propriedade que experiências como esta, corresponderam
a uma gravidez que desembocou em João XXIII! E cujo parto foi o grande
Concílio! Embora os métodos sejam muito diversos, há neste tipo, tanto a nível
de opção pelos pobres, quanto no resgate de textos Sagrados, algo que se soma à
própria Teologia da Libertação e à afirmação da dimensão profética da segunda
metade do século passado. Em 1952, foi publicado o romance “Les saints vont em
enfer”, que enaltecia a experiência dos padres operários. Esses padres contavam
com o apoio de leigos de ambos os sexos, participaram das lutas dos
trabalhadores e se aproximaram do Partido Comunista Francês. Quando o papa Pio
XII encerrou esta experiência, ele já encontrou a oposição de três dos cinco
cardeais franceses! Mais tarde, influenciado pelo Pacto das Catacumbas (talvez
o seu primeiro fruto direto) o Papa Paulo VI reabilitou em 1965 os “Padres
Operários”!
Eu menciono aqui esta experiência francesa, pois também ela
conheceu praticamente um epílogo na virada dos anos 2000! Em 2005 apenas 80
ainda viviam entre os operários! Falta de vocações em geral? Ou falta de
vocação para a vivência do ministério deste modo?!
Já que estamos na França, é impossível avançar sem mencionar
os protestos de maio de 1968 que foram iniciados por movimentos estudantis
insatisfeitos com o sistema educacional francês e espalharam-se pelo país,
mobilizando milhões de pessoas. Na história do século passado, este
acontecimento não é um detalhe e nem deve ser visto de forma isolada. As
imagens dos combates e das violências cometidas pelas tropas americanas no
Vietnam espalharam-se pelo mundo e motivaram protestos tanto nos EUA quanto na
Europa. Além disso, em abril de 1968, Martin Luther King foi assassinado. Sua
morte provocou inúmeras revoltas nos EUA e, claro, também se refletiu nos
grupos estudantis da França. Na extinta Checoslováquia acontecia uma tentativa
do governo de realizar reformas no país no sentido de romper com o
autoritarismo imposto pelos soviéticos. Os acontecimentos em Praga eram
acompanhados de grande mobilização estudantil.
Tudo isso invadiu os corredores da Igreja
Ela, sob Paulo VI, avançava nas mudanças preconizadas pelo
Vaticano II numa espécie de revolução lenta, mas demolidora, dos pilares
tridentinos. Os padres despiam-se dos símbolos que os separavam do Povo de Deus
e faziam questão de mostrar em suas mangas de camisa, a proximidade preconizada
na Lumen Gentium!
Esta engrenagem, porém, mudou. Ou pior! Iniciou um processo
de reversão. Não teríamos como atribuir
um ano certo para este fenómeno, mas diria, sem medo de errar, que foi nos anos
oitenta! O Vaticano II perdeu força e a Teologia da Libertação ficou sob fogo
cerrado. Como bem disse o sociólogo Pedro A. Ribeiro de Oliveira, na análise de
conjuntura eclesial “A Igreja do Brasil: entre o fundamentalismo e a profecia”,
realizada pelo Cepat, houve uma intervenção clara de João Paulo II e do cardeal
Ratzinger, no sentido de interpretar o Concílio de forma a evitar, o que na sua
ótica se apresentava como desvios do mesmo. Podemos chamamos a isso de
“restauração identitária”, que será a plataforma, de onde se orquestrarão todos
os projetos de boicote a uma Igreja popular já florescente. Sob a desculpa
esfarrapada de se evitar uma “relativização das teses conciliares”! O dedo de
João Paulo II em riste, ao padre poeta, místico e ministro Cardenal no primeiro
governo de Ortega, estava longe de ser um gesto indelicado de um chefe de
Estado estrangeiro! A Igreja de Roma alcançou nos anos oitenta no contexto do
final da Guerra Fria, um poder moral que aparentemente tinha perdido. Voltou-se
sobre si mesma e se empoderou junto às Igrejas Particulares e movimentos
populares e sociais que tinham conquistado o seu espaço à luz do Concílio. Não
foram poucos os que escreveram na época, sobre o caráter ambíguo das viagens
papais! Confirmar as Igrejas ou interferir nelas?!
Vinte anos depois de terminado o Concílio, João Paulo II
lançou a ideia da necessidade de reformular a evangelização, a partir “da
Palavra, no Espírito”. Dando continuidade a essa percepção, o Papa Bento XVI,
esforçou-se por levar adiante esse projeto. De fato, no fim dos anos setenta,
em Roma sentia-se fortemente a necessidade de encontrar novos rumos, que
unificassem em profundidade a ação de toda a Igreja. Havia sérias desconfianças
ao que estava surgindo principalmente na América Latina. Foi claro em João Paulo um evidente mal-estar
em relação às novidades teológicas e pastorais surgidas no pós-concílio; pode
estar aqui a génesis do que foi apelidado mais tarde, de “volta à antiga
disciplina”.
Embora Paulo VI já o tenha usado em sua exortação apostólica
de 1975, Evangelii nuntiandi, o papa polonês menciona o termo Nova Evangelização
a primeira vez, na visita inicial à sua terra natal, em 1979 e o universaliza,
por assim dizer, no discurso pronunciado na assembleia do CELAM, em
Porto-Príncipe, em 1983. Não que tivesse uma ideia exata do que significava
essa “nova evangelização”. Era uma
direção a ser seguida pela Igreja. Um
rumo, para dar “novo impulso à missão evangelizadora”, segundo os critérios
exclusivos de Roma! “Um novo ardor, novos métodos e novas experiências”! Esta
Nova Evangelização mereceu em 2012 um Sínodo dos Bispos para explicar seu
verdadeiro conteúdo e finalidade. Bem na linha do Catecismo da Igreja Católica,
determinado pela Assembleia Extraordinária do Sínodo de 1985. É difícil não
pensarmos que por trás da fundamentação teológica da Nova Evangelização não houvessem
resquícios de proselitismo e de apologética. A Evangelização 2000 projeto
idealizado pelo Padre Tom Forrest em 1984, e plenamente endossado por João
Paulo II, foi “unificando” os métodos e as formas de ser Igreja em torno de
“uma enorme pescaria”, denotando claramente preocupação com o número de
católicos afastados. No entanto, entre os anos 2000 e 2010 o IBGE apontou um
crescimento de 61,45% dos evangélicos no Brasil! Noves fora nada, foram
projetos como este, que ajudaram a proliferar Meios de Comunicação Católicos
voltados para a comunicação em massa, sem nenhuma preocupação de formar
cristãos maduros na fé, interativos com a sociedade com base na Doutrina Social
da Igreja. Praticamente todos, sem
exceção, procuram-se equilibrar entre o poder central da Igreja e os
patrocinadores (muitas vezes os governos de plantão). Nestas condições, o
profetismo de inspiração vetero-testamentário e do próprio Jesus saiu de cena.
O Pentecostalismo modelo americano penetrou com toda a força
na sociedade brasileira. E isso ocorreu concomitantemente com o encolhimento
das CEBS levado a cabo, por um desinteresse efetivo das elites católicas e
surgimento de movimentos de massa com metodologia e mística, escancaradamente
opostos! Como nos diz o sociólogo Ricardo Mariano, “com exceção das
denominações que priorizam o evangelismo de massas e realizam cultos em grandes
catedrais (...), as igrejas pentecostais tendem a formar comunidades religiosas
relativamente estáveis e pequenas. Isto é, elas são compostas por congregações
e pequenos templos em que todos se conhecem, residem no mesmo bairro e
compartilham coletivamente crenças, saberes, práticas, emoções, valores, os
mesmos modos e estilos de vida, moralidade e posição de classe. (...) São laços
gerados por meio do contato pessoal, de relações face a face, estabelecidas em
frequentes e sistemáticas reuniões coletivas realizadas semanalmente, ano após
ano. Eles tendem, assim, a formar relações fraternais de amizade, de confiança
mútua e também de solidariedade com os ‘irmãos necessitados’! IHU online). Ora, isso já conhecíamos nós em nossas opções
dos anos 60! A nossa Igreja se afastava, para abrir alas aos “concorrentes”!
Volta a nos lembrar o Ricardo Mariano: “O avanço pentecostal
no Brasil contribuiu para intensificar o declínio numérico da Igreja Católica e
da Umbanda e para “pentecostalizar” parte do protestantismo histórico e do
próprio catolicismo. O chamado “avanço das seitas” pentecostais, nos termos do
papa João Paulo II, e a formação do pluralismo religioso levaram a religião
hegemônica a rever sua prédica e suas estratégias institucionais e a reavaliar
sua relação com as demais religiões presentes em solo nacional, em detrimento
do ecumenismo”! A Igreja Católica mudou. E se mudou, mudaram também os métodos
de ação e a preparação de novos agentes para esse “novo modelo”! Contudo, por
incrível que pareça e é um fenómeno que revela uma certa esquizofrenia, a nível
de documentos da CNBB; até aos dias de hoje, as linhas de ação evangelizadora
correspondem ao Vaticano II, a Medellin, a Puebla e nomeadamente a Aparecida!
Poderá estar a Igreja Católica vivendo uma situação
semelhante à que vitimou um avião da TAM em 2007? Com uma turbina girando para
frente e outra para trás, o JJ 3054 se desgovernou: guinou à esquerda no último
terço da pista, deslizou sobre o gramado, avançou contra um muro, cruzou a
avenida Washington Luís e se chocou a uma velocidade de 178 quilômetros por
hora contra um posto de gasolina e o prédio da TAM Express.
Todos, as 187 pessoas a bordo morreram, além de 12 outras em
solo. Uma turbina freava e a outra acelerava!
Exagerei, claro. Mas os nossos Seminários, praticamente sem
exceção, estão formando jovens para uma Igreja que não existe mais. Então nos
perguntamos: é esquizofrenia, ou projeto de recriar com eles, a Igreja que
ficou pelo retrovisor?! Temos motivos para vivermos preocupados sim! Mas existem outras perguntas. Como será uma
Igreja em pleno século XXI sem a dimensão profética e se ausentando dos grandes
debates, seja pela má formação dos seus quadros, ou quiçá por um alheamento
voluntário dos mesmos! Francisco tem cumprido o seu papel como ninguém
esperava, após João Paulo e Bento. Mas ele tem recebido o que vem sendo chamado
de “oposição híbrida”! Os aplausos pela frente dão lugar a críticas amargas
pelas costas! O esvaziamento do profetismo aliado ao negacionismo e tendências
de engrossar grupos de extrema direita, é fatal para a Igreja de Jesus Cristo.
Óbvio que o Espírito Santo dará um jeito... Mas esse é outro assunto!
Por enquanto fico com as palavras de Halik: Uma das
manifestações do triunfalismo é o clericalismo: aqueles que estavam destinados
ao humilde serviço da comunidade tornam-se uma “classe dominante”, um governo
sagrado (hierarquia) que reivindica o monopólio da verdade”! O profetismo que
embalou os nossos sonhos e que me tirou de meu país aos 25 anos, pode estar
dando lugar a um triunfalismo modelo dom Quixote! Sem inimigos reais, sem
dinheiro, sem poder! E se observarmos a origem dos nossos vocacionados, veremos
um círculo vicioso e pernicioso: Comunidades “especiais” que geram padres para
reforçar esse modelo! A estes, a nossa visão de Igreja e Ministério diz cada
vez menos e nos associam a uma esquerda que deve ser extirpada da “Igreja de
Cristo”!
Manuel Joaquim R. dos Santos
Londrina, 22 de fevereiro
Esse texto foi escrito pelo Padre Manuel Joaquim Rodrigues
dos Santos, um padre da Arquidiocese de Londrina-PR, português de nascimento,
estudou Filosofia pela Universidade Católica de Lisboa, Teologia pela PUC de Curitiba,
fez Especialização em Comunicação Social pelo SPIS de Roma, foi diretor da
Rádio Alvorada de Londrina, foi pároco em várias paróquias, professor de
Comunicação e de Profetismo e, Doutrina Social da Igreja na Teologia para
Leigos, atualmente pároco da cidade de Florestópolis – berço da Pastoral da
Criança e escreve semanalmente na Folha de Londrina.
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1 Comentários
Uma lucidez dolorida! Coloca o dedo na ferida.
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