O Sermão da Montanha como ideal para as Fraternidades
(Trecho do texto de Patrício Rice da
Argentina para o Boletim Internacional da Fraternidade e republicado no Boletim
144 de 2009 da Fraternidade Secular do Brasil)
A
partir de nossas conversas em Foz[1],
farei um resumo da mensagem de Arturo Paoli usando e adaptando o texto do livro
(Las Bienaventuranzas - un estilo de Vida Sal Térrae, Santander 2008. Pp 134).
Este texto surpreende pela agudeza de suas reflexões, que verdadeiramente
apresenta o ideal de vida que pretendemos viver nas fraternidades.
O
ponto de partida é a esterilidade do mundo ocidental também chamado de mundo
desenvolvido. Este mundo se encontra tão enredado no consumismo e vícios do
capitalismo (como sinônimo de sistema neoliberal) que ignora o sofrimento que
este sistema produz em grande parte dos habitantes do planeta ao negar os meios
de vida a muitos povos. Seus líderes: políticos, intelectuais, religiosos ao
não enxergar esta realidade tornam-se insensíveis, xenófobos, narcisistas,
egoístas e corruptos.
Em
Foz escutamos histórias de turistas do Mediterrâneo que em meio aos seus
divertimentos nas praias, nos lates... esbarram em corpos de africanos afogados
que lutam para chegar às costas européias. Este mundo ocidental ao fechar os
olhos diante de tantas mortes e não vidas não pode considerar-se cristão por
mais que o afirmem.
Diante
do desespero dos pobres e do descrédito generalizado do Ocidente, os crentes
têm de buscar a verdadeira mensagem de Jesus de Nazaré nos evangelhos. E Arturo
em sua comunidade "Beato Carlos de Foucauld" se coloca nesta busca
radicalmente. A resposta ele a encontra no estilo de vida proclamado nas Bem-aventuranças.
Quem
são os pobres?
Pobre
é aquela pessoa que está buscando os meios necessários de vida para si e para
seus familiares. Poder-se-ia enumerar aqui os sem-terra, os imigrantes e todos
os famintos e os que não tem um trabalho. Além destes, são pobres aqueles que
por seu grito, lamentos e pela silenciosa exposição de suas aflições pertencem
a esta multidão de excluídos através da história e que são os destinatários do
discurso de Jesus desde aqueles dias.
Em
um movimento contínuo exigem compaixão e responsabilidade. "A humanidade
deve reconhecer que o caminho a tomar para avançar na liberdade e no amor passa
pelo homem e pela mulher sofredores" (Las raíces del hombre: de la muerte
al amor).
E
o rico?
Em
contraposição o rico é alguém que não participa do avanço da justiça, nem
escuta o grito dos pobres uma vez que não quer que se revise o sistema atual
que produz a injustiça. Por outro lado, para Jesus, a riqueza definida como o
uso ofensivo dos bens é incompatível na relação com Deus. A opção é: Deus ou o
dinheiro! A iniciativa de apresentar como modelos, pessoa que notoriamente e
sem escrúpulos acumularam grandes riquezas constitui verdadeira blasfêmia
contra Deus.
"Uma pobreza ou pseudo pobreza
religiosa que não tenha como finalidade o projeto de uma sociedade mais justa
não faz parte do Sermão da Montanha! Isto posto "pobres de espírito"
são criaturas angélicas que por sua indiferença aos acontecimentos políticos apoiam
uma sociedade que esmaga os pobres que dizem amar. Um homem ou uma mulher que
quer seguir Jesus não pode estar de acordo com a agenda dos poderosos reunidos
em Nova York, mas deve estar com os loucos reunidos em Porto Alegre para sonhar
uma nova sociedade. Jesus não é o pregador de uma técnica que tem como objetivo
tornar ágil o corpo e relaxada a mente. Jesus quer um outro mundo de onde
provenha a justiça e a paz. À hora presente o mundo exige que desçamos da
esfera das ideias, onde temos nos entretido, enquanto os lobos ocupam a terra e
a mantêm submetida à força. Então estaremos ali onde a justiça, a paz e a
fraternidade são bens dos vivos. Somente ali podem tornar-se realidade estes
bens".
A identidade verdadeira do ser
humano está nas bem-aventuranças.
Uma
espiritualidade autêntica só pode fundar-se sobre a identidade que se alcança
através de relações assumidas com responsabilidade.
A
justiça, a paz e a pobreza são relações concretas, políticas, econômicas
através das quais uma pessoa realiza sua verdadeira identidade.
O
capitalismo fere a pessoa até o ponto de torná-la incapaz de buscar sua
verdadeira identidade. "A solidão do cidadão global" (de James Baumann)
denuncia este dano como uma lesão profunda e causa de comportamentos
irresponsáveis que aparecem na esfera afetiva, econômica e política.
Capitalismo
quer dizer que a política está basicamente a serviço da produção e do consumo
para aumentar dinheiro em benefício de uns poucos.
A
verdadeira história, pelo contrário, é o transformar do ser humano que se
autocria exercitando sua capacidade crítica e vivendo sua responsabilidade. Não
se pode reduzir a história humana às finanças, ao consumismo, ao
"marketing".
Com
esta reflexão chegamos assim às três dimensões da vida retiradas do Sermão da
Montanha: ser pobre, ser justo/a e ser construtor/a da paz. Esta é a verdadeira
identidade do ser humano que deve ser anunciada como alternativa para nossa
sociedade globalizada.
As
bem-aventuranças não são um catálogo de virtudes, mas sim conquistas
necessárias para uma existência humana que é livre e solidária. O sentido
verdadeiro de nossas vidas é libertarmo-nos de nosso egoísmo para fazermo-nos
capazes de conviver com os demais.
Ser pobre: Ser pobre quer dizer
ser livre e ser solidário. Significa possuir o gosto pela pessoa e por isso não
confunde uma pessoa com um objeto. É ser capaz de ter misericórdia diante das
necessidades alheias. Quer dizer sentir a beleza das coisas, estar liberado/a
do impulso consumista para ser capaz de admirar e contemplar a criação. Só um
pobre como São Francisco pode compor o Cântico das Criaturas. É o canto do
pobre que se sente acolhido no grande concerto que celebra a alegria de
existir.
Ser justo/a: Melhor
dizendo "sedento/a de justiça" porque nenhuma pessoa é totalmente
justa. Sedento/a quer dizer "sentir-se sempre inclinado/a a ir mais
além", levada/o sempre para fora de seu próprio "eu" pela
aparição de um rosto que carrega os signos da injustiça. É o milagre do diálogo
guiado pelo amor que é capaz de questionar-se e de restituir a outra pessoa uma
situação de dignidade a ponto de ela dizer: "Tu me trataste como
pessoa".
Ser construtor/a da Paz:
Vivemos em um mundo onde há guerras em cada continente. Iraque, Afeganistão,
Chechênia, Oriente Médio, Colômbia, África e Ásia com participação beligerante
de todos os continentes. O projeto da "globalização neoliberal" é no
fundo um projeto de guerra que substitui as ideologias. O absolutismo econômico
é produto de uma "geração adúltera e perversa"; "adúltera"
porque despreza a política como tarefa necessária para satisfazer as
necessidades básicas para colocá-la a serviço do consumo; "perversa"
porque a consequência é que se rouba o necessário para se viver da maior parte
da humanidade para pôr a humanidade inteira em estado de guerra. A posição de
Jesus e de seus seguidores deve ser difundir "a fome e a sede de justiça e
paz" como uma verdadeira necessidade da humanidade.
Se anteciparmos assim a
chegada de um tempo de justiça e paz começaremos a realizá-lo na sociedade.
Desejar profundamente a
paz em todos os espaços da vida é a condição para trabalhar pela paz.
Um texto final:
"Como apaixonado do Evangelho descubro uma
vez mais sua modernidade que se renova em todas as épocas. Jesus confiou a
relação de fé em Deus e responsabilidade concreta àqueles que têm fome, estão
nus e excluídos. E Jesus confia estas misérias ao Espírito Santo para que nós,
seus seguidores sejamos capazes de repensá-las no tempo e de tomar as decisões
necessárias. Assim, o homem e a mulher crente encontrarão o sentido da
contemplação, da oração e de sua relação pessoal com Deus que é Amor. E o homem
e a mulher não crente podem achar este mesmo caminho no encontro real conosco.
Este é o mistério diante do qual devemos calar-nos. Em nossa época o ser humano
faz a guerra ou constrói a paz. "Esta é no fundo a opção diante da qual se
encontra todo ser vivo hoje em dia".
Gracias Arturo por tua
mensagem!
Patrício Rice
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